O Século da Decolagem

Módulo Lunar da missão Apollo 11 fotografado a partir do módulo de comando orbitando a Lua. Ao fundo vemos o nosso planeta, a Terra

Visão do Módulo Lunar Eagle da missão Apollo 11 retornando após o pouso na Lua em junho de 1969, fotografado a partir do módulo de comando, orbitando a Lua. Ao fundo vemos o nosso planeta natal, a quase 400.000 quilômetros de distância. Crédito: NASA/missão Apollo 11

O século 20 vai ficar marcado nas apostilas de “doutrinamento quântico” ou de “navegação em espaço profundo” dos próximos milênios como aquele em que o homem venceu a gravidade e alcançou o espaço. Está bem, está bem, não foi tanto. Ele conseguiu deslizar em órbita, quase ralando os fundilhos no topo da atmosfera, mas que foi para o espaço, isso foi. É verdade que os lançamentos foram explosões “controladas”, nada muito sensato, uma tecnologia até bem “pau e fogo”, mas o fato é que os foguetes chegaram nas órbitas planejadas – pelo menos a maioria deles.

Ainda que não estejamos num estágio, digamos, adiantado de conhecimentos e ainda que os meios e métodos desta época em que estamos vivendo não sejam nem de longe aqueles que a odisséia cósmica solicita, ou solicitará, o fato é que saímos da caverna e pelo menos começamos a ver as árvores que cercam a clareira. A clareira onde, em algum ponto distante e esquecido do passado, de alguma maneira que não sabemos bem como, estabelecemos nossa toca.

O “século” é uma unidade besta. São cem translações. Mas  não sabemos nunca em que altura estamos no ano galáctico. Um século não significa nada. Mal se concorda com o dia exato em que um século começa e termina. Um fato pode ter ocorrido na Polinésia, no momento em que a virada do ano estava acontecendo… em Paris. Então fica mais coerente falar em fatos, coisas, acontecimentos que podemos recortar e grudar na parede do nosso quarto.

Do Demoiselle ao TU-144

La Demoiselle de Santos Dumont

La Demoiselle de Santos Dumont

O século 20 começou com o homem tentando imaginar um jeito de voar com alguma engenhoca que não ficasse à mercê do vento, um “mais pesado que o ar”, e terminou com o avião supersônico para cem passageiros, já pendurado no teto de um museu. Isso define melhor o século 20 do que dizer que ele começou no “reveillon” de 1900 e terminou na queima de fogos da meia-noite de 1999. É mais lógico definir um período da epopéia humana pelos fatos do que pelo calendário, embora a escola mande decorar a data e usar os fatos como “macete”. E se formos definir e caracterizar este século, o que quer que venha a ser um século, o “vintão maravilha” foi o século da decolagem.

Hubble, Coco Chanel e Gagarin

Edwin Powell Hubble no observatório de Monte Palomar

Edwin Powell Hubble no observatório de Monte Palomar

A maior sorte de Albert Einstein foi ter sido avisado por Edwin Hubble de que o Universo se expande. A Relatividade ainda estava no “rechô” e ainda era possível driblar a novidade com a inclusão de um remendo, uma constante qualquer, uma ponderação corretiva. Ficaria bem complicado se tivessem soltado a teoria para as apostilas escolares e, num horário de recreio qualquer, um “Joãozinho” petulante surgisse com a novidade da expansão. Foi sorte, Hubble ter estado no lugar certo na hora certa.

Iuri Gagarin

Iuri Gagarin

Coco Channel despiu a roupa de seus compartimentos estanques e deixou-a enrolar-se livremente ao corpo, nua, sem simetrias. Aboliu a costura. Foi um símbolo de um século que rompeu preconceitos. É discutível quem foi mais emblemático deste século maluco, se Einstein ou Coco Chanel. Os dois! Sim, os dois. E houve também Isadora Duncan, que despiu a dança e mostrou-a, também, nua e sem simetria ou imposição de compassos. Século maluco. Talvez por ter entendido antes de qualquer outro ser humano que o que se estava vivendo era uma mutação tão profunda que não restariam “conceitos sólidos” e que tudo resultaria relativo, Einstein tenha tido o cuidado de mostrar a língua. Há quem diga que aí nascia o “pop” e há quem discorde assegurando que aí nasceu mesmo foi o “rock”. Curioso que o gesto tenha sido imitado pela maior banda de rock do “vintão maravilha”, os Rolling Stones. Há quem diga que o século 17 foi o século da pintura; o 18, da música; e o 19, da literatura. E o 20 foi o século do que? Do rock’n roll? Se nos basearmos na língua mostrada por mais tempo, sim. Mas não podemos esquecer que foi a Física que mostrou a língua antes do rock’n roll. Um século não é maluco por acaso: o “vintão maravilha” deixa uma dúvida heterodoxa entre a Física e o rock’n roll. E as línguas expostas em gestos de desmistificação, de quebra de preconceitos na luta do comportamento livre e elevado contra o obscurantismo cativo ficaram para trás diante de uma frase curta, seca, essencial e antropologicamente gigantesca: “A Terra é azul” – um fato óbvio e uma verdadezinha meio boba, mas que os deuses desconheciam.

Guerra e paz, contrastes, paradoxos

Explosão atômica em Nagasaki 1945

Explosão atômica em Nagasaki 1945

Foi o século em que o Homo sapiens tateou o futuro, teve em suas mãos a Energia, descobriu uma solução para a sobrevivência na fissão de um punhado de urânio. Mas a besta imoral, o “civilizado” cidadão político, atroz, matreiro e desleal, fez com a maravilha uma bomba e jogou-a sobre população civil desarmada – crianças estavam sentadas em bancos escolares. Infectado de egocentrismo e assoberbado por uma ilusão de semi divindade, o Homo sapiens pela primeira vez em sua cambaleante e desajeitada andança pelas cercanias da toca demonstrou ser capaz de se destruir. Sim, destruir a si mesmo – uma possibilidade até então não considerada seriamente, mas agora demonstrada experimentalmente.

O nosso otimismo nos faz pensar que estejamos decolando em direção à descoberta, a grande descoberta do Universo habitado, a vida extraterrestre. E foi no século vinte que a patética ignição foi acionada num pirotécnico lançamento. Um dia – se houver bilhões de dias! – um professor qualquer de história, entusiasta do “vintão maravilha”, dirá aos seus alunos:

– A coisa era meio cerimoniosa. Alguns elementos escolhidos e muito bem treinados eram colocados em pequenas cápsulas na ponta de tubos imensos, cheios de explosivo. Então todos os participantes do ritual se afastavam e um sistema fazia disparar uma centelha que deflagrava a explosão do material contido no tubo. A exaustão ocorria pela abertura inferior e, por reação, a engenhoca era impulsionada para cima. Extremamente grotesco e rudimentar, mas funcionava. Ou pelo menos funcionava na maioria das vezes, o que é admirável. As primeiras grandes sondagens e até a saudosa ida à Lua foram conseguidas com este método rudimentar.

Primeiro passo do homem na Lua

Primeiro passo do homem na Lua

Vamos enfurnar mais um pouco as velas de nossa imaginação pelas águas do futuro: Algum dia um grupo de aluninhos com as cabeças metidas em capacetes de “plexiglass” guiados por uma cuidadosa professora vai se reunir em torno de uma cúpula, no solo de Serenitatis, e a professora dirá: “Vejam! Aqui está ela. A primeira pegada humana fora da Terra”. Será inevitável a pergunta sobre quando o saudoso feito tenha acontecido (“Cai na prova, professora?”). E é aí que vem o mais intrigante. Um século que teve paradoxos, loucuras, e os mais incríveis episódios já vividos pela espécie humana será dito simplesmente como mais um século qualquer: “Foi no século vinte, Joãozinho. Está na apostila”.

Talvez o tempo tenha desbotado os detalhes e o brilho dos séculos passados ou talvez nós não tenhamos sensibilidade para identificar as peculiaridades do que está se amontoando para trás. Mas de tudo que o homem já viveu, o século vinte foi a fase mais intensa, complexa e dramática. E é difícil crer que este século acabe empilhado numa caixa de papelão no sótão. Pelo contrário, já é bem hora de começar a revê-lo para, talvez, tentar entendê-lo.

Milton W.

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